O TÉDIO
Cena
do filme Laranja Mecânica (1971), de Stanley Kubrik, em que o
personagem principal é submetido a um programa experimental de controle
da agressividade. A história se passa na cidade de Londres, em um
futuro não muito distante, onde gangues de rua atormentam os cidadãos.
Após a lavagem cerebral, ele passa a sentir insuportáveis crises de
náusea toda vez que sente desejo de agir violentamente. A estratégia
do governo é combater um afeto ( a ira) com outro afeto (o nojo).
A náusea é um estado de alarme, uma reação do corpo contra algo que se
aproxima, mas que não pode ser assimilado. O filme coloca em questão os
limites da vontade humana frente às paixões.
É
uma tarefa da filosofia atual traçar uma outra intrepetração dos afetos
e do proprio pensar. Para isso está ocorrendo um processo de
reavaliação da imagem de homem como " animal racional", cujo sentir e
cujo pensar moram em casas separadas. A filosofia contemporânea tende a
defender a concepção de que todo ser humano já é marcado de significação
e de racionalidade. Inversamente, todo pensar é desde sempre afinado
por alguma disposição afetiva. Numa passagem do curso sobre Nietzsche
de 1936-37, Heidegger afirma: "o homem não é uma essência pensante, que
também quer algo, e que além do pensar e do querer ainda se acrescenta o
sentir, seja para embelezamento ou para enfreiamento, mas sim que o
estado do sentimento é o originário, mas de tal forma que pensar e
querer pertençam a ele" ( Nietzsche, I, p.63).
A
filosofia nos séculos XX e XXI busca reinterpretar os sentimentos,
paixões e afetos não mais como estados subjetivos, passivos e
inferiores, como fonte de engano moral ou cognitivo, mas como algo que
pertence estruturamente à constituição do existir. Estamos sempre em
alguma ambiencia afetiva, como, por exemplo, a alegria, a tristeza ou a
cólera, mesmo quando essas atmosferas não se deixam reconhecer como tal.
Até mesmo a suposta inderteminação que se instaura no tédio ou na
indiferença não deve mais ser descrita como uma mera "ausencia de
humor". Ao contrário, trata-se de uma das formas de "afeto" em que
encontramos com maior frequencia. Essa nova perspectiva, mais positiva,
sobre as paixões parece conduzir a filosofia na atualidade a reassumir o
significado originário de seu próprio nome: amor ao saber.
Segundo Heidegger, no parágrafo 18 do curso Conceitos Fundamentais da Metafísica (1929),
o tédio é o afeto mais determinante da nossa época. Tão determinante
que passa sempre desapercebido. O que é o tédio? Heidegger distingue
dois tipos, um mais superficial, com uma causa determinada, como quando
nos entendiamos com um livro, um filme, com a espera interminável de um
ônibus ou com a conversa sem graça de alguém numa festa. Existe,
entretanto, em "tédio profundo", que não tem nenhuma causa específica,
mas que cobre todas as coisas e a nós mesmos como uma névoa. A band de
rock biquíni Cavadão fez sucesso nos anos 1980 com uma música sobre o
tema:
"sabe esses dias em que as horas dizem nada
E você nem troca o pijama, preferia estar na cama
O dia, a monotonia tomou conta de mim.
É o tédio, cortando os meus programas, esperando meu fim"
(tédio, 1985)
O
tédio é o sentimento de vazio, é a sensação de que o mundo como um todo
perdeu a importância, de que o tempo pesa. O trabalho e a diversão são
formas de mantermo-nos ocupados e de fugir ao tédio. Mas o que há de tão
assustador no tédio? O refrão da música do Biquíni Cavadão enfatiza a
relação entre tédio e morte:
"Tédio, não tenho um programa
Tédio, esse é o meu drama
O que corrói é o tédio
Um dia, eu fico sério
Me atiro desse prédio."
O
tédio é apavorante porque nos coloca diante de nós mesmos : seres que
existem e que deixam de existir sem que possa dizer porque. Contudo, o
tédio profundo pode ser também uma excelente oportunidade de reavaliação
de todos os valores, de redescoberta do mundo, de reconquista de si.
Entregar-se ao tédio é recusar estratégica e provisoriamente o tempo
cotidiano, com seus peuqenos e grandes afazeres. Como nos versos de
Fernando Pessoa:
"
Aproveitar o tempo!
Ah, deixem-me não aproveitar nada!
Nem tempo, nem ser, nem memórias de tempo ou
de ser!...
Deixem-me ser uma folha de árvore, titilada pela
brisa,
A poeira de uma estrada involuntária e sozinha ,
O vinco deixado na estrada pelas rodas enquanto
não vêem outras,
O pião do garoto, que vai a parar,
E oscila, no mesmo movimento que o da alma,
E cai, como caem os deuses, no chão do Destino"
(Apostila, 1928)
É
preciso muita coragem para deixar o tédio profundo se instalar sem
recorrer a táticas evasivas, tais como o trabalho, a conversa ou as
distrações. Mergulhado no tédio profundo corre-se mais riscos do que
praticando qualquer esporte de ação, tal como pular de parapente ou
praticar canoagem, mas o resultado pode ser ainda mais radical:
alterações surpreendentes da existência.
esses
desenhos foram feitos por um aluno profundamente entediado, durante uma
aula do curso de direito. As figuras estilizadas transmitem uma
atmosfera de aprisionamento e de vazio.
Fonte: www.saberfilosofiasaber-filosofia.blogspot.com.br
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