Filosofia Circular

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Filosofia do tédio

O TÉDIO

Cena do filme Laranja Mecânica (1971), de Stanley Kubrik, em que o personagem principal é submetido a um programa experimental de controle  da agressividade. A história se passa na cidade de Londres, em um futuro não muito distante, onde gangues de rua atormentam os cidadãos. Após a lavagem cerebral, ele passa a sentir insuportáveis crises de náusea  toda  vez que sente desejo de agir violentamente. A estratégia do governo é combater um afeto ( a ira) com outro afeto        (o nojo). A náusea é um estado de alarme, uma reação do corpo contra algo que se aproxima, mas que não pode ser assimilado. O filme coloca em questão os limites da vontade humana frente às paixões.


  É uma tarefa da filosofia atual traçar uma outra intrepetração dos afetos e do proprio pensar. Para isso está ocorrendo um processo de reavaliação da imagem de homem como " animal racional", cujo sentir e cujo pensar moram em casas separadas. A filosofia contemporânea tende a defender a concepção de que todo ser humano já é marcado de significação e de racionalidade. Inversamente, todo pensar é desde sempre afinado por alguma disposição afetiva. Numa passagem  do curso sobre Nietzsche de 1936-37, Heidegger afirma: "o homem não é uma essência pensante, que também quer algo, e que além do pensar e do querer ainda se acrescenta o sentir, seja para embelezamento ou para enfreiamento, mas sim que o estado do sentimento  é o originário, mas de tal forma que pensar  e querer pertençam a ele" ( Nietzsche, I, p.63).
  A filosofia nos séculos XX e XXI busca reinterpretar os sentimentos, paixões e afetos não mais como estados subjetivos, passivos e  inferiores, como fonte de engano moral ou cognitivo, mas como algo que pertence estruturamente à constituição   do existir.  Estamos sempre em alguma ambiencia afetiva, como, por exemplo, a alegria, a tristeza ou a cólera, mesmo quando essas atmosferas não se deixam reconhecer como tal. Até mesmo a suposta inderteminação  que se instaura no tédio ou na indiferença não deve mais ser descrita como uma mera "ausencia de humor". Ao contrário, trata-se de uma das formas de "afeto" em que encontramos com maior frequencia. Essa nova perspectiva, mais positiva, sobre as paixões parece conduzir a filosofia na atualidade a reassumir o significado originário de seu próprio nome: amor ao saber.
  Segundo Heidegger, no parágrafo 18 do curso Conceitos Fundamentais da Metafísica (1929), o tédio é o afeto mais determinante da nossa época. Tão determinante que passa sempre desapercebido. O que é o tédio? Heidegger distingue dois tipos, um mais superficial, com uma causa determinada, como quando nos entendiamos com um livro, um filme, com a espera interminável de um ônibus ou com  a conversa sem graça de alguém numa festa. Existe, entretanto, em "tédio profundo", que não tem nenhuma causa específica, mas que cobre todas as coisas e a nós mesmos como uma névoa. A band de rock biquíni Cavadão fez sucesso nos anos 1980 com uma música sobre o tema:
"sabe esses dias em que as horas dizem nada
E você nem troca o pijama, preferia estar na cama
O dia, a monotonia tomou conta de mim.
É o tédio, cortando os meus programas, esperando meu fim"
(tédio, 1985)
  O tédio é o sentimento de vazio, é a sensação de que o mundo como um todo perdeu a importância, de que o tempo pesa. O trabalho e a diversão são formas de mantermo-nos ocupados e de fugir ao tédio. Mas o que há de tão assustador no tédio? O refrão da música do Biquíni Cavadão enfatiza a relação entre tédio e  morte:
"Tédio, não tenho um programa
Tédio, esse é o meu drama
O que corrói é o tédio
Um dia, eu fico sério
 Me atiro desse prédio."
  O tédio é apavorante porque nos coloca diante de nós mesmos : seres que existem e que deixam de existir sem que possa dizer porque. Contudo, o tédio profundo pode ser também uma excelente oportunidade de reavaliação de todos os valores, de redescoberta do mundo, de reconquista de si. Entregar-se ao tédio é recusar estratégica e provisoriamente o tempo cotidiano, com seus peuqenos e grandes afazeres. Como nos versos de Fernando Pessoa: 

" Aproveitar o tempo!                                                                                                                                    
Ah, deixem-me não aproveitar nada!
Nem tempo, nem ser, nem memórias de tempo ou
de ser!...
Deixem-me ser uma folha  de árvore, titilada pela 
brisa,
A poeira de uma estrada involuntária e sozinha  ,
O vinco deixado na estrada pelas rodas enquanto
não vêem outras,
O pião do garoto, que vai a parar,   
E oscila, no mesmo movimento que o da alma,
E cai, como caem os deuses, no chão do Destino"
(Apostila, 1928)        

  É preciso muita coragem para deixar o tédio profundo se instalar sem recorrer a táticas evasivas, tais como o trabalho, a conversa ou as distrações. Mergulhado no tédio profundo corre-se mais riscos do que praticando qualquer esporte de ação, tal como pular de parapente ou praticar canoagem, mas o resultado pode ser ainda mais radical: alterações surpreendentes da existência.
esses desenhos foram feitos por um aluno profundamente entediado, durante uma aula do curso de direito. As figuras estilizadas transmitem uma atmosfera de aprisionamento e de vazio.
Fonte: www.saberfilosofiasaber-filosofia.blogspot.com.br

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