Filosofia Circular

sábado, 21 de dezembro de 2013

Fim de ano ?


Cada fim de ano figura o fim do mundo. Vejo no sorriso alegre de cada indivíduo uma espécie de maquiagem, máscaras, estas que escondem uma caveira em decomposição. Não se trata de querer assustar os pobres humanos com a morte que há de vir, mas de constatar que não há motivos para sorrir tanto e, mesmo assim, sorriem em meio a frases prontas como “Feliz ano novo e que tudo se realize no ano que vai nascer”. Ora, um filósofo chato de carteirinha começaria a fazer uma profunda avaliação da sentença, que toma como base princípios indemonstráveis – todo princípio é indemonstrável para quem não sabe –, que engana o homem e que este parece gostar de ser enganado. Mas o desejo de ser feliz continua tão presente como a nervura que estrutura o homem em pé, que o permite levantar da cama e mendigar a felicidade como o caçador busca sua presa. O homem é um predador da felicidade, mas, com uma ressalva: o negócio é permanecer no desejo e nunca alcançar a presa. É o que o velho e bom Blaise Pascal chamaria de divertissement, um desvio militar estratégico da própria condição, um esquecimento de si, do próprio vazio ancorado no coração humano. No entanto, não há coisa melhor a se fazer, para aqueles que bancam os filósofos, pois detectar o divertissementno povo já é divertissement de intelectual. Diante disso, mergulhado no divertissement ou abraçando-o ao detectá-lo, como poderíamos viver?
De fato, esta última questão parece ser o grande enigma do filósofo que busca a saída da caverna e a visão do esplendor das ideias que podem dirigir a vida. Nestes tempos de festas que o mercado tomou conta – e o mercado sempre tomará conta de qualquer festa, até da filosofia, mas isso é estória para outro dia –, salientei a busca da felicidade e o trágico pensamento de Pascal. Agora, antes de desejar meu feliz ano novo filosófico, trago ao palco mais dois filhos da tragédia, Epicteto e Schopenhauer. O primeiro tem uma pérola que escorre entre seus dedos e, por acaso, caiu sobre minha escrivaninha: “Não busque fazer com que os acontecimentos cheguem como você quer, mas queira os acontecimentos como eles acontecem, e o curso de tua vida será feliz”. (Manual, VIII, Ed. Flammarion). A vontade de gravitar os acontecimentos como convém à nossa vontade é o erro do homem: este deve assentir àquilo que acontece e como acontece. O filósofo grego é um trágico ao mostrar este desajuste entre o não sábio e tudo que lhe acontece. A tonicité – firmeza – buscada com tanto afinco pelos estóicos ainda tem algo a nos ensinar, pois será permanecendo nela que seremos felizes e poderemos entoar um feliz ano novo estóico. Todavia, ainda não cheguei lá: olhando mais de perto, quais seriam estes acontecimentos que acariciam nossos rostos todos os dias e, mesmo ferindo a pele ao nos tocar, manteria nossa tonicidade? Schopenhauer atravessa o século e sussurra um grito em meus ouvidos: “Parecemos carneiros a brincar na relva, enquanto o açougueiro já está a escolher um ou outro com os olhos, pois em nossos bons tempos não sabemos que infelicidade justamente agora o destino nos prepara – doença, perseguição, empobrecimento, mutilação, cegueira, loucura, morte, etc.” (Contribuições para à doutrina do sofrimento do mundo, &150, Coleção OS PENSADORES). Não faço aqui grandes elucubrações abstratas – meus pés estão no barro e cheiram sangue, como a citação do filósofo alemão. Agora poderemos dizer feliz ano novo, mas lembrando que o divertissement de Pascal é o que nos mantêm no processo, então, que nem tudo se realize no ano que vai nascer, pois o que nos restará a fazer se tudo já estiver feito? Portanto, em um só coro, em uma só voz, Epicteto, Pascal e Schopenhauer exclamam, com todas suas observações, seu feliz ano novo filosófico: “Feliz ano novo e que nem tudo se realize no ano que vai nascer”, apesar de nosso Mario Quintana, o poeta de Alegrete, não deixar esquecer em um de seus poemas que estão gravados no meu coração, quando penso como poderia escolher viver: “A vida é triste, o mundo é louco”. (A Cor do Invisível, p. 882, Editora Nova Aliança).

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Filosofia da depressão


Uma em até cinco pessoas pelo mundo, em um período da vida, provavelmente apresentará o que a medicina denomina depressão. Determinadas modificações químicas no cérebro com vinculação dos neurotransmissores (noradrenalina e serotonina, em maior proporção estas) estarão associadas a autoestima arruinada, tristeza continuada, alterações cognitivas graves. Cansaço, medo, desinteresse, vazio, sensação de dor, de morte, insônia.
Suponha que eu diga que um ventilador apresenta barulho, as pás se movimentam em baixa rotação, às vezes param. E em seguida, eu lhe digo que abriremos o pequeno motor elétrico do ventilador e que pesquisaremos o que faz com que ele apresente autoestima arruinada, tristeza continuada, cansaço. Você me diria que uma pessoa não é um ventilador? Sim, eu acredito que a maioria não é um ventilador; não sei dizer de todas, não as conheço. A Filosofia Clínica estuda alguns elementos dos bastidores mecânicos do fenômeno médico (não filosófico clínico) nomeado por depressão. Exemplo: historicamente, a depressão é tida como apatia, renúncia, recuo, destituição dos elementos vitais. Uma falácia compreensível, mas cada vez menos justificável, se você tomar a Filosofia Clínica como estudo. Acredito na depressão como um movimento também de luta, de afirmação, de vida. N., senhora a quem atendi há muitos anos, escreveu na época: "...a única vez em que tenho a lembrança de estar realmente viva, Lúcio, foi quando estive em depressão. Aquele luto, tudo sem cor, dor no corpo, vontade de morrer é que me fez viver. Aprendi o que é viver na minha depressão. Sem a depressão a minha vida não teria graça nenhuma".
Mas é notório que alguns não desenvolvam a depressão, ainda que diante de quadros existenciais predisponentes historicamente a ela. Já algumas pessoas, pela constituição interna que formaram estruturalmente, caminham facilmente, pelo pequeno estímulo ou nenhum, em direção a ela. Encontram subterfúgios para um caminho rumo ao que se chama depressão. Há muitos exemplos. Um deles encontramos nas palavras de Nietzsche em Para além do bem e do mal quando escreve: "Os homens que conheceram a profundidade da tristeza, se traem quando são felizes, têm um certo modo de compreender a felicidade que parece mostrar que querem comprimi-la e sufocá-la, por ciúmes - porque sabem que, infelizmente, essa logo fugirá".
Também a sociedade pode empurrar grupos de pessoas a uma condição similar ao que a medicina chama de depressão por motivos que vão da lição à advertência. Mas qual a razão de, eventualmente, a sociedade promover a depressão e, concomitantemente, oferecer auxílio para a depressão que - neste caso - fomentou? Uma das respostas está na natureza da ajuda que a sociedade oferece (observe em quais condições os remédios e as terapias servem como paliativos, quando estão a serviço do próprio "mal" a que se propõem debelar). Existem fatores sociais, intrincados, derivativos, difíceis de mapear que podem levar ao que se denomina depressão. Diversos pesquisadores buscaram estes vetores; alguns autores os imaginaram, inventaram, enquanto outros os descobriram. Nem sempre esta diferença é relevante. Tomemos como exemplo o que Joaquim Nabuco escreveu em O abolicionismo, obra de 1884 (por favor, procure dar contexto ao escrito que segue): "Quanto às suas funções sociais, uma aristocracia territorial pode servir ao país de diversos modos: melhorando e desenvolvendo o bem-estar da população que a cerca e o aspecto do país em que estão encravados os seus estabelecimentos; tomando a direção do progresso nacional; cultivando, ou protegendo, as letras e as artes; servindo no exército e na armada, ou distinguindo-se nas diversas carreiras; encarnando o que há de bom no caráter nacional, ou as qualidades superiores do país, o que mereça ser conservado como tradição. Já vimos o que a nossa lavoura conseguiu em cada um desses sentidos, quando notamos o que a escravidão administrada por ela há feito do território e do povo, dos senhores e dos escravos.
Desde que a classe única, em proveito da qual ela foi criada e existe, não é a aristocracia do dinheiro, nem a do nascimento, que papel permanente desempenha no Estado uma aristocracia heterogênea e que nem mesmo mantém a sua identidade por duas gerações? Se, das diversas classes, passamos às forças sociais, vemos que a escravidão, ou as apropriou aos seus interesses, quando transigentes, ou fez em torno delas o vácuo, quando inimigas, ou lhes impediu a formação, quando incompatíveis".
Intensidade na experiência dos fenômenos relacionados à depressão é um dos fatores mais mencionados por pessoas que a viveram, como a tristeza muito forte. Existe aqui uma peculiaridade: a intensidade, de modo amplo, mas sem ser regra, liga-se imediatamente a dois eventos usualmente próximos. O primeiro, a paralisação de atividades que estavam em andamento; o segundo, ao contraste com os fenômenos internos. Mas já encontrei situações em clínica nas quais as pessoas atribuíam a intensidade por diferenciação e não por critérios de mais ou de menos.
A Analítica de Linguagem, um dos ricos veios da Filosofia Clínica, auxilia a decodificação dos laços internos, a mecânica da depressão, quando os dados de Semiose são verossímeis. Ou seja, observe a vizinhança, os referenciais, o movimento para uma acepção. E os casos nos quais tudo vai bem existencialmente, não há quaisquer registros que possam aventar a possibilidade de um quadro depressivo, nem histórico em torno da pessoa, e subitamente um forte episódio de depressão desce sobre a vida da pessoa arruinando suas buscas, seu trabalho, sua família? Eis um dos motivos pelos quais em Filosofia Clínica tanto se confere ênfase a interseções tópicas, aos movimentos estruturais.
A depressão também pode ser indicada existencialmente. Certa ocasião, em uma aula, sugeri a uma aluna farmacêutica que oferecesse em sua farmácia depressivos, e não apenas antidepressivos. A questão é que a sociedade na qual vivemos entende como razoável o antidepressivo e como uma afronta o remédio depressivo.

Fonte:Lúcio Packter é filósofo clínico e criador da Filosofia Clínica. Graduado em Filosofia pela PUC-FAFIMC de Porto Alegre (RS). É coordenador dos cursos de pós-graduação em Filosofia Clínica da Faculdade Católica de Cuiabá e Faculdades Itecne de Cascavel. luciopackter@uol.com.br