Filosofia Circular

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

A FILOSOFIA DOS OVNIS

 


 Os Filósofos nunca se interessaram por objectos voadores não identificados (OVNIS). Em mais de vinte e cinco séculos de pensamento sistemático sobre todas as áreas da experiência humana, este assunto não mereceu grande reflexão. Este facto é merecedor de atenção porque é improvável que se trate de uma coincidência. Existem várias razões para nos surpreendermos com esta estranha anomalia. A primeira é a de que a Filosofia não se esquece de nada. Há sempre alguém em todas as épocas que reflecte sobre os eventos e que procura o seu significado último. A segunda razão é a de que o contacto com OVNIS ou seres extraterrestres se insere no velho problema filosófico da existência de um mundo autónomo fora da percepção humana. A terceira razão é a de que cada uma dessas experiências é caracterizada por ser única, imprevisível e irrepetível. Desde Aristóteles, há uma reflexão filosófica sistemática sobre o significado de experiências que não se podem repetir e que são, de facto, únicas. Uma outra razão deriva do interesse da Filosofia em saber mais sobre o lugar da mente humana na natureza. Hipotéticos seres alienígenas fariam com que a exclusividade humana fosse seriamente abalada.
Todas estas razões fazem com que seja interessante tentar compreender esta distracção dos Filósofos. Desde os tempos de Parménides, o velho filósofo pré-socrático, sabe-se que o mundo não tem buracos porque tudo o que existe tem, precisamente, a propriedade de existir. Os OVNIS e hipotéticos alienígenas não são buracos na malha do ser que Parménides descobriu pela primeira vez na história do pensamento humano; se existirem, compartilham a propriedade de existir com os objectos mais modestos à nossa volta: os grãos de areia ou o pó. Do ponto de vista filosófico, não é mais interessante reflectir sobre deuses ou extraterrestres do que sobre o pó dos nossos sapatos ou sobre a areia das praias. Todos os seres navegam no barco do ser e, nesse barco, nada é mais espantoso de que qualquer outra coisa. Mesmo que existam de facto todos os seres que imaginámos nas nossas literaturas e em que acreditámos nas nossas religiões, se os encontrássemos a todos reunidos no mesmo sítio, como propõe Arthur C. Clarke em O Fim da Infância, isso não seria especialmente entusiasmante para um filósofo. O espectáculo da diferença desses seres plenipotenciários em relação aos outros seres da natureza seria irrelevante porque os primeiros são tão escravos do ser que Parménides descobriu quanto os segundos. Os Filósofos morrem de tédio com o tema dos OVNIS. Do seu ponto de vista, mesmo que existam de facto seres alienígenas não humanos, isso seria mais do mesmo; mais um entretenimento popular do que um assunto sério. Os Filósofos procuram os buracos do ser e os buracos do mundo. Na longa história dos relatos de encontros entre seres humanos e seres não humanos não há nenhum indício de que se possa discernir neles algo que seja uma excepção à ordem que Parménides descobriu: o pó é, as flores são, as estrelas são, os deuses são, os humanos são; se existirem, os extraterrestres também são.
Esta razão de natureza metafísica é a que faz com que os Filósofos não tenham nada a dizer sobre seres com características muito diferentes das humanas, isto apesar de recorrerem nos seus livros a figuras ainda mais improváveis do que os alienígenas, como os duplos ponto a ponto idênticos a seres humanos com a única diferença de não terem consciência, os zombis filosóficos, os superseres e os génios malignos cartesianos.
O argumento que aqui é apresentado explora uma segunda razão para a distracção dos Filósofos. A Filosofia ocupou-se desde sempre da parte da natureza humana dedicada a conhecer. Os seres humanos sempre tiveram uma grande diversidade de experiências e algumas delas podem ser consideradas extremas. O problema é o de que, apesar da diversidade e da radicalidade de algumas experiências humanas, os seres humanos não conhecem nada fora deles mesmos e dos seus interesses.
Para compreender este ponto, o paralelo com os leões pode auxiliar. Os leões só percepcionam os objectos que estão na chamada faixa da savana porque é aí que se encontram os motivos que os interessam: comida e outros leões. O mundo fora da faixa da savana não interessa aos leões. Os seres humanos gostam da história lisonjeira de que se interessam pelo mundo objectivo e infinito que existe para além deles. O problema é que não se pode provar isso. A racionalidade humana permite a compreensão de um mundo mais vasto do que a faixa da savana, mas não nos dá nenhuma prova de que existe alguma coisa fora do conjunto de objectos que poderia ser chamado a faixa da racionalidade. Os objectos que podem entrar na mente humana interessam desde sempre aos seres humanos. Tome-se a percepção como exemplo. Temos experiências subjectivas associadas a alguns movimentos da Terra: dia e noite e estações do ano. Porém, não temos nenhuma experiência subjectiva associada a outros movimentos da Terra, como as lunações, a precessão do eixo ou a rotação em torno da galáxia. Por que razão temos umas experiências e não outras? A razão é evolutiva: umas experiências têm valor para a sobrevivência; as outras não. Com os níveis mais elevados da mente humana, como a razão ou inteligência, passa-se a mesma coisa. A inteligência escolhe alguns assuntos do seu interesse de entre um grupo infinito, mas não repara naqueles em que não tem interesse. O mundo da mente humana parece um escafandro forrado com imagens do mundo objectivo mas que não são o mundo objectivo. Que tipo de objectos está, pois, dentro do escafandro?
A resposta é simples: objectos em que temos interesses e os erros na avaliação de objectos em que temos interesses.
A hipotética existência de seres não humanos que tenham contactado com seres humanos tem a forma de uma experiência radical que poderia mostrar que os seres humanos conhecem realidades que existem fora deles mesmos e que têm interesses diferentes dos seus. Esta é uma hipótese sedutora.
Muitas vezes encontramos na vida não apenas aquilo em que temos interesse mas também aquilo que se impõe a nós, mesmo que não tenhamos nenhum interesse nisso. Os leões tratam dos seus interesses mas nós podemos influenciar os interesses dos leões ou até acabar com os leões. Se o caso dos OVNIS fosse avaliado exclusivamente do ponto de vista dos interesses humanos, seria possível afirmar que o contacto com hipotéticos seres inteligentes não humanos nunca aconteceu, não pode acontecer e, se acontecer, não é do interesse último dos seres humanos. (Este último ponto parece contra-intuitivo porque hoje valorizamos muito a curiosidade intelectual; porém, raciocinando por analogia, é pouco provável que os leões apreciem a intromissão dos humanos nos seus assuntos. O fenómeno OVNI tem, pois, um aspecto político que não deve ser esquecido: talvez não seja do interesse dos humanos, ao contrário do que parece.)
Se isto é assim, há uma possibilidade remota de seres diferentes dos humanos se intrometerem dentro do escafandro das imagens humanas do mundo. Esta não é uma possibilidade muito abstracta ou puramente conceptual. Há um problema a explicar. Existe um número elevado de narrativas sobre contactos entre humanos e seres não humanos. Todas as literaturas antigas estão cheias de relatos com essas características: os textos proféticos de Israel (Elias, Ezequiel, Henoc, Jacob), as interacções entre deuses e homens na Grécia antiga, mais de um milénio de crenças mágicas da Idade Média sobre o rapto de mulheres por seres não humanos que as transportam por grandes extensões de terra e as reúnem numa assembleia festiva, etc. A grande beleza dos textos antigos faz com que os assuntos pareçam diferentes entre si e, sobretudo, diferentes dos relatos contemporâneos sobre contactos com alienígenas. Do ponto de vista filosófico, é necessário explicar a frequência elevada de narrativas com estas características. O problema é o de que a natureza humana possui um grau tão elevado de complexidade que não é fácil interpretar as narrativas antigas como testemunhos de experiências reais que envolvam seres não humanos. Porquê? Há uma boa razão para isso. Os seres humanos não conhecem nada de modo imediato; tudo o que conhecem deriva de uma complexa actividade de interpretação de sinais. Para se ter uma noção de que não há excepções neste processo, é possível afirmar que os seres humanos não têm experiências imediatas nem de si próprios. Quando alguém se sente a si próprio não está a ter uma experiência imediata mas, como todas as outras experiências que tem na vida, está a interpretar sinais do seu próprio organismo e do ambiente. O processo cognitivo de interpretações de sinais não é isento de erros.
A escolha a fazer perante o fenómeno OVNI é simples: trata-se de uma manifestação de interesses de outros seres na faixa da savana dos seres humanos ou de um efeito secundário do processo de construção das imagens que temos do mundo? Os sonhos nocturnos são inúteis para os interesses do quotidiano e podem ser considerados efeitos secundários do que as pessoas fazem no quotidiano. A longa história de contactos com seres não humanos pode ser uma espécie de sonho permanente da humanidade: inútil, enigmático, permanente. Exactamente como os sonhos que são inúteis, enigmáticos e não se vão embora porque fazem parte da natureza humana. Para decidir entre as duas escolhas é necessário descartar a tese do efeito secundário e adoptar o que parece óbvio: os OVNIS são seres independentes dos seres humanos. O problema é o de que a tese do efeito secundário não é fácil de descartar. A essência do fenómeno OVNI é o encontro com o Outro, com uma realidade que não tem nada a ver com a realidade humana. Porém, a mente humana é um filme muito complicado que até consegue inventar o Outro. Se adoptássemos o critério da lâmina de Occam, a tese do efeito secundário é menos onerosa e mais simples do que a tese de seres independentes. O desafio é, por conseguinte, o de comparar os erros que acontecem na mente humana com as narrativas sobre OVNIS. Se encontrássemos algum indício de que estas narrativas são indistinguíveis ou suficientemente parecidas das narrativas em situação de erro, seria reforçado o caso de os extraterrestres serem um sonho permanente da humanidade. Eis algumas situações de erros dentro do escafandro da mente humana.
O que acontece no quotidiano é muito rápido e não é notado. Os velhos neurologistas do século XIX tinham, porém, um método para atenuar esta dificuldade: o método das lesões. Um dano na massa encefálica manifesta-se na subjectividade da pessoa e vice-versa. Veja-se o que acontece num grupo fascinante de lesões que originam as que são conhecidas como patologias da crença.[1]
Quando alguém acredita que morreu ou que não é o seu verdadeiro eu (síndrome de Cotard [2]), ou que um dos braços não é de si mesmo mas do seu interlocutor (negligência unilateral [3]), a quem atribui a propriedade de ter três braços, [4] ou na síndrome de perda de consciência do próprio corpo, [5] revela que o processo de identificação da própria consciência do sujeito pode ter problemas e que não é imediato ou automático (apesar de o parecer na vida normal). Ter sensações subjectivas significa, entre muitas coisas, que alguns sinais, eventos, estruturas e conteúdos são interpretados com fazendo parte do si mesmo e outros como não fazendo parte de si mesmo. Isto significa que, para algumas pessoas, o seu próprio corpo ou uma parte do seu próprio corpo é um objecto estranho, anómalo, que parece vir de fora.
Em patologias da crença como a síndrome de Capgras ou ‘illusion des sosies’,[6] em que o paciente acredita que as pessoas que melhor conhece ou os seus familiares foram substituídos por impostores que têm a aparência física exacta das pessoas que substituíram, e a síndrome de Frégoli,[7] em que o paciente acredita que as pessoas que melhor conhece são de facto outras pessoas que o perseguem ou lhe desejam mal, acontece igualmente um erro de interpretação sobre o que faz parte do conjunto finito de seres dotados de consciência. Os sinais que identificam um ser conhecido dotado de consciência são interpretados de modo divergente.
A ser verdadeira a tese famosa de Julian Jaynes, existiu um momento da história da humanidade em que a voz da consciência, aquela com que cada ser humano fala a si mesmo, foi tomada como a voz dos deuses. Para Jaynes, a explicação da acção dos homens há poucos milénios atrás é estruturalmente semelhante à explicação que hoje se pode dar de uma acção, com a única diferença de que o início da acção não era atribuído a um eu ou a uma vontade pessoal mas aos deuses. [8] Os seres humanos eram autómatos comandados pela voz dos deuses. É provável que a reconstrução do espaço mental de seres humanos do passado seja uma tarefa impossível e que a tese de Jaynes apenas tenha valor como sugestão. Porém, mesmo que seja uma leitura criativa de textos literários antigos, o ponto interessante que coloca à reflexão é o da interpretação a dar à voz da consciência pessoal. A mera possibilidade de essa voz que todos os seres humanos ouvem e que identificam consigo mesmos não ser parte do si mesmo, ou poder ser interpretada como não fazendo parte do si mesmo, faz com que se deva ter muito cuidado na avaliação de relatos sobre contactos com alienígenas. [9] De um certo ponto de vista, a realidade que é a mais íntima das nossas vidas parece um alienígena que as pessoas transportam dentro de si.
Se existe a possibilidade de erros constantes em indivíduos sem patologia (as ilusões perceptivas, por exemplo) e se esses erros podem ser dramaticamente amplificados em situações patológicas, a inferência óbvia a fazer é a de que não existe nenhuma infalibilidade na interpretação de sinais, nem nenhuma certeza do indivíduo a respeito das suas próprias experiências. O elemento comum à normalidade e à patologia é a possibilidade do erro que acontece na interpretação de sinais ou indícios. Não existe nenhum ser humano que não use de modo útil os erros permanentes da percepção. A perspectiva não existe no mundo objectivo, mas apenas do ponto de vista de observadores. Isto é, as bermas de uma estrada nunca se encontram, apesar de parecer aos observadores humanos que isso acontece. Se o erro ou ilusão é permanente, manifestações recorrentes do mesmo tipo de fenómenos não são improváveis. Devemos, aliás, contar com isso em todas as áreas da vida humana. Dizem os astrónomos que a mancha de Júpiter é uma tempestade com um milhão de anos; na Terra, as tempestades duram pouco tempo e são descontínuas. A mente humana é assim também: tem ilusões permanentes e ilusões esporádicas. Os OVNIS são ilusões esporádicas que acontecem na ilusão permanente da mente humana.
É possível generalizar a partir destes factos para as narrativas sobre hipotéticos contactos com seres não humanos. Por um lado, os humanos estão sempre a interpretar sinais e não podem deixar de o fazer; por outro lado, não há processos perfeitos e, por isso, é muito provável que as narrativas multisseculares sobre contactos com seres não humanos sejam erros de interpretação de dados da experiência humana ou efeitos secundários dela.
Não é possível ter uma ideia clara sobre o valor de milhares de textos sobre seres alienígenas sem tomar em conta séculos de reflexão filosófica sobre o que os seres humanos podem e não podem conhecer. As lições provenientes de outras áreas científicas (Psicologia, Neurociências, Psiquiatria, Ciência Cognitiva) são igualmente importantes. Se os seres humanos estão sempre a interpretar, e não fazem qualquer outra coisa senão interpretar, o inventário que fazem sobre os seres que existem tem de tomar em conta a possibilidade de a interpretação construir a realidade. Os erros podem fazer parte do grupo dos interesses dos seres humanos. Vejamos como.
As narrativas sobre contactos com OVNIS contêm a promessa de acesso a uma realidade diferente da humana. Isto é muito improvável. A história dos supostos encontros de humanos com extraterrestres está ainda longe de ser escrita. Há bons e maus livros sobre o assunto, mas um cicerone seguro é, indubitavelmente, Jacques Vallée. Em livros que fizeram época, como Passaporte para Magónia e Dimensões, o que é mais curioso é que os extraterrestres são espantosamente parecidos com os seres humanos. [10] Eis uma pequena lista de semelhanças: viajam como nós viajamos; vestem-se assim como nós também nos vestimos; têm preocupações assim como nós temos preocupações; têm curiosidade assim como nós temos curiosidade; têm pernas, braços e cabeças assim como nós temos pernas, braços e cabeças; há relatos que chegam ao cúmulo de dizer que eles recolhem plantas e animais assim como nós sempre fizemos; tudo indica que fazem pela vida, assim como nós estamos sempre a tentar fazer. Existem, indubitavelmente, diferenças; a mais conspícua das quais parece ser a posse de um poder superior que lhes permite impor a sua vontade a humanos e a animais. Nada disto, porém, permite afastar a suspeita de que se está perante mais uma manifestação do evemerismo da mente humana. (Evémero foi um mitógrafo grego do ano de 300 a.C. que, na sua História Sagrada, mostra que os deuses foram originalmente heróis e conquistadores humanos que, ao longo do tempo, acabaram por ser venerados e deificados.) [11]
Se as narrativas sobre avistamentos de OVNIS e contactos com alienígenas tivessem elementos radicalmente diferentes dos que estão presentes na vida humana, é provável que não fossem percepcionados de todo. A dúvida filosófica a respeito dessas narrativas reside precisamente neste ponto. Trata-se de uma diferença tão grande que os humanos não têm qualquer modo de atentar nela, ou, pelo contrário, trata-se de experiência humana aumentada através de processos evemeristas ainda não compreendidos? Por um lado, a inflação da experiência humana pode parecer uma realidade não humana. Isto já sabemos. Não precisamos de recorrer a narrativas de encontros com alienígenas porque a imaginação literária está cheia de exemplos dessa natureza. Por outro lado, a diferença radical seria invisível e não existiria qualquer razão para os alienígenas se encontrarem com humanos; poderiam fazer o que desejam fazer sem que os humanos reparassem nisso. Também é possível que as narrativas que existem não sejam um exemplo de evemerismo mas um sinal de uma diferença radical.
Deste ponto de vista, o fenómeno OVNI teria duas partes: uma expressa em narrativas com uma gramática humana; uma outra estaria completamente fora dos quadros mentais dos seres humanos e seria, por conseguinte, invisível.
Neste ponto do nosso conhecimento não é possível decidir estas questões. Porém, outras classes de experiências humanas muito diferentes fazem suspeitar da tese de uma diferença tão grande que está para além do que pode ser percepcionado. A classe de experiências religiosas e a classe de experiências em torno da morte mostram seres humanos em situações extraordinárias. Trata-se de uma outra manifestação do método das lesões. O excepcional auxilia a compreender o normal porque o amplifica. Dizendo de outro modo, as experiências religiosas e as experiências em torno da morte não nos dão o Outro mas são apenas o espelho em que vemos traços dos seres humanos.
Pondere-se o caso das narrativas sobre encontros com seres sagrados. As religiões parecem apontar para realidades fora dos seres humanos. Os textos de todas as religiões descrevem poderes não humanos. Porém, é impossível encontrar um único texto, um único parágrafo que represente qualquer coisa que não seja humana. Uma análise fina dos textos sagrados mostra constantemente estruturas humanas. Repare-se no vasto conjunto de textos sagrados que parecem mais afastados da experiência humana: as histórias da criação do mundo. Nas milhentas narrativas de criação do mundo de todas as religiões da Terra não há nada que não seja humano. Nós trabalhamos; os deuses fazem qualquer coisa para ocupar o tempo; nós procuramos perfeição; os deuses criadores criam perfeição; nós preocupamo-nos com os nossos filhos e com os nossos haveres; os deuses preocupam-se com a sua criação e com o que os seres criados andam a fazer. De facto, é difícil ou até mesmo impossível encontrar um único texto religioso que fale de Religião. Todos os textos religiosos ocupam-se das novelas da vida quotidiana de todos nós em versão bigger than life. Os Evangelhos são um exemplo extraordinário disso. Com um lápis, corte-se tudo o que não é história humana: poderosos contra fracos, pessoas que não sabem o que fazer do tempo que têm para viver e que apreciam ajuda na realização dessa tarefa, e actividade política (o que são os Evangelhos sem o conflito de Roma com Israel e de diferentes grupos entre si?). Até o Mal é absurdamente parecido com os seres humanos: vê, participa, perturba, ocupa-se, trata da sua vida, desafia.
É evidente que este não é um retrato simpático da Religião. Mas não é simpático porquê? Se no exercício do lápis ficar algo que seja completamente Outro, aceitar-se-ia o resultado. Porém, nada resiste ao exercício de uma leitura acompanhada a lápis. O que é a Ressurreição senão um assunto humano disfarçado? Os seres humanos morrem; faz-se uma pequena variação nesse motivo e temos que os seres humanos já não morrem. O que parece religioso é, de facto, uma colecção de pequenas variações da experiência humana realizadas com o objectivo de dar conforto. Os seres humanos apreciam muito narrativas de conforto como essas e, para além delas, inventaram indústrias poderosas com o único fim de terem conforto imaginário: a literatura tem milhares de anos e não mata a fome a ninguém mas não há um único povo que não tenha inutilidades literárias; o mesmo com a música e com as outras artes. Recentemente, inventou-se o cinema porque a compulsão humana para o conforto é parte da sua natureza. Não passa pela cabeça de ninguém razoável procurar no mundo os seres de ficção inventados por Hollywood, nem o Adamastor de Camões, nem o D.Quixote de Cervantes, nem o Sherlock Holmes de Conan Doyle. A indústria evemerista que toma a experiência humana e a transforma de infinitos modos tem muitas manifestações. Nos nossos dias inventou-se a internet. Faça-se um inventário dos conteúdos que lá estão. O que é que os seres humanos adoram ver, mais, adoram exclusivamente ver? A resposta é evidente a todos: o único assunto que interessa aos seres humanos é o que os outros seres humanos fazem. Para não morrerem de tédio, este assunto é glosado ao infinito.
Algumas das variações deste assunto até parecem religiosas; outras até parecem alienígenas.
O mundo de Parménides não tinha buracos. O mundo dos assuntos que interessam aos humanos também não tem buracos. Só estamos interessados uns nos outros: quem manda em quem, quem pode auxiliar ou prejudicar, quem pode dormir ou não dormir com alguém. Os factos da vida são monótonos mas como a verificação desse facto não é lisonjeira, os seres humanos adoram grandes narrativas de progresso e de descoberta. O que um rapaz do tempo da Guerra de Tróia fazia é exactamente o mesmo que um rapaz contemporâneo faz. E o que é que ambos fazem? Fazem pela vida como podem.
Talvez a classe de experiências religiosas não seja significativa. Pode ser. Faça-se, então, sem constrangimentos, qualquer outro exercício sobre narrativas que aparentemente indiciam a existência de seres não humanos. Não há razão para se ser criterioso e exclusivista a este respeito. A técnica do lápis pode ser aplicada a qualquer relato. Tanto faz. A benefício do argumento, veja-se uma outra classe de supostas experiências humanas que contactam com seres não humanos. Existe desde a Antiguidade uma indústria literária sobre o sobrenatural. Esta é mais uma forma de entretenimento humano. Hollywood já percebeu isso e produz industrialmente filmes e séries sobre o assunto. É entretenimento humano no seu melhor porque faz nascer o conforto de que os seres humanos não são uma anomalia na ordem natural e que, de facto, estão acompanhados por outro tipo de seres. Desde os tesouros da escuridão da Mesopotâmia e do Egipto até a películas contemporâneas como O Exorcista, O Fim dos Dias ou A Queda, os motivos são sempre os mesmos. É difícil não morrer de tédio perante a monotonia da imaginação humana.
Um autor francês, Didier Audinot, chegou a publicar um guia das estradas francesas, belgas e suiças com as aparições de fantasmas e mulheres brancas. [12] No departamento tal, ao quilómetro tal, aparecem habitualmente mulheres-fantasma brancas e bonitas. Audinot fez um guia das aparições assim como o Guia Michelin faz uma lista dos restaurantes. O mundo do sobrenatural é um espelho gigantesco do mundo humano. Supostamente, o sobrenatural deveria representar precisamente isso: o sobrenatural. Infelizmente, só representa histórias humanas para entretenimento humano. Os fantasmas e poltergeists são horrivelmente humanos. Faça-se o exercício do lápis com o motivo sobrenatural que parece mais afastado dos cuidados quotidianos dos seres humanos. Veja-se, por exemplo, a colecção espantosa e vasta de narrativas sobre encontros com Damas Brancas. Ao mesmo tempo que a menina de catorze anos Bernardette Soubirous descobriu a Dama Branca que a sociedade eclesiástica da sua aldeia interpretou e inventou como Nossa Senhora de Lourdes, em Fevereiro de 1858, mais de quinhentos outros casos tinham acontecido na França daquela época. Bernardette não falava francês, mas patois, e descreveu a mulher branca que tinha visto com a palavra patois Aquèro, isto é, Aquilo. [13] Nunca houve falta de mulheres brancas no mundo! Sempre as vimos e sempre as veremos em Lourdes, Fátima e em centenas de outros sítios. Até o velho Sócrates disse ao seu amigo Críton que o foi visitar à prisão pouco tempo antes de morrer, no diálogo platónico com o nome deste, que sonhou com uma mulher branca. Os Irlandeses têm uma banshee, isto é, uma mulher branca, para cada irlandês que morre. Estudiosos como Marija Gimbutas, Carlo Ginzburg e Claude Lecouteux fizeram inventários impressionantes de como as mulheres brancas estiveram sempre na nossa vida ao longo dos séculos desde o Paleolítico. [14] Por vezes, até tinham nome próprio: Diana, Herodíade, Satia, senhora Abonde e muitos outros. Como é possível que até o Sobrenatural seja espantosamente parecido connosco? Será que não há um demónio diferente, um anjo diferente, algo que não tenha nada a ver connosco? Estas são questões que se reiteram a propósito dos extraterrestres. Parecem diferentes mas, de facto, são pequenas variações evemeristas do que vemos ao espelho. Eles são nós.
Nada disto é uma tese teórica. Trata-se de mera verificação de dados. Este tipo de exercícios pode ser feito com a classe de narrativas que se desejar. Apenas mais um exemplo. As representações sobre o Além são tão velhas quanto a história humana; enchem bibliotecas e apenas o olvido das nossas próprias raízes culturais pode fazer nascer a impressão de que o que é hoje escrito sobre o assunto é inovador.
Sempre existiram apocalipses e representações do Além e da Morte. Nesta literatura vasta poderíamos encontrar o que procuramos obsessivamente: um buraco na fechadura do mundo por onde se possa ver algo que não seja humano. De facto, não há nenhuma razão para que os supostos extraterrestres visitem apenas os vivos; se são mais poderosos do que os seres humanos, poderiam também visitar os sonhos dos humanos, as experiências peritanáticas e, a existir, a sobrevida dos defuntos. O drama da solidão humana é que nem mesmo numa literatura vastíssima e antiquíssima sobre que existe depois da morte é possível encontrar uma fenda no ovo cósmico, para utilizar a expressão de Joseph Chilton Pearce. [15] Não é possível encontrar nenhuma fenda, nem nenhum buraco.
Ulisses na terra dos Cimérios; Er, o Panfílio, no mito de Er de Platão; e milhares de outros textos sobre o Além, o que mostram? Já se sabe: os viajantes do Além de todas as épocas vêem uns seres muito semelhantes a nós: felizes uns, infelizes outros, punidos uns, recompensados outros, uns vão para cima, outros para baixo, e assim se entretêm como nós também nos entretemos por aqui nesta terra onde ainda temos os pés. Swedenborg, o príncipe dos visionários do Barroco e fundador da Igreja da Nova Jerusalém, descreveu com detalhe alucinante a vida quotidiana dos anjos e das almas dos defuntos: vivem em casas, as casas têm mesas e lareiras, eles falam entre si… [16] Um pesadelo maior do que este não é possível. Até no Além as coisas são semelhantes às que temos à nossa volta!
Não nos surpreenderíamos se os anjos de Swedenborg também tivessem telemóveis e internet.
O nosso umbigo está no céu. Superficialmente, existem muitas disciplinas que representam tudo o que existe fora dos seres humanos. Essas disciplinas têm os nomes, que o tempo honra, de Ciência, Literatura, Direito, Teologia, Belas Artes e tantas outras. A Ovnilogia ou Ufologia pode ser acrescentada a esta lista, seja ao lado da Ciência, seja ao lado da Literatura, seja ao lado da Teologia.
Tanto faz. Estas supostas ciências são, de facto, ramos da Umbigologia, a ciência comum a todas, aquela que coloca os traços do rosto humano em todos os recantos do mundo para onde olhamos.
Onde está o Totalmente Outro? Não o conseguimos imaginar, não o conseguimos representar, não o conseguimos sonhar, não o conseguimos pensar. O escafandro é o nosso espelho; não parece ter buracos nem fendas.
É neste quadro que as narrativas sobre os OVNIS têm de ser pensadas. Desejamos um passaporte para Magónia (Vallée) ou para o cosmos (John Mack), assim como desejámos Ilhas dos Bem-Aventurados, Terras Puras, Utopias, El Dorados e Paraísos. As narrativas sobre contactos com alienígenas são manifestações do desejo humano. Dizem mais sobre os humanos do que sobre os alienígenas. Tal como não procuramos no mundo os seres de ficção, não há razão para procurarmos alienígenas. Porém, podemos constituir empresas industriais para produzir textos, filmes, séries televisivas, livros e teatro local para alimentar o desejo humano de uma solidão atenuada por visitas de seres com curiosidade pelo que fazemos e com intervenção nos nossos assuntos. Esse ramo da indústria sempre existiu e tudo indica que o futuro será próspero para ele.
As narrativas sobre OVNIS fazem parte da faixa da savana dos seres humanos e correspondem aos seus interesses. Os OVNIS são um efeito secundário da natureza humana, seja pelo lado do erro de processos cognitivos, seja pelo lado da sublimação da experiência através de processos evemeristas. Se os alienígenas não existirem, teremos de os inventar. De facto, já fazemos isso há muito tempo e com muito gosto.
Autor: Manuel Curado 
Fonte: www.jcienciascognitivas.home.sapo.pt

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