A Record lança Albert Camus: uma vida, de Oliver Todd, que acompanha em detalhe a história do argelino morto tragicamente em um acidente de carro.
No dia 4 de julho de 1960, o homem que ganhou o Prêmio Nobel de 57 e que gastou metade do cheque na compra de um palacete no campo, recebeu a visita de seus inseparáveis amigos Anne, Janine e Michel Gallimard. Eles o fizeram desistir de uma passagem de trem para voltarem juntos de carro a Paris. O carro, um Facel-Véga dirigido por Michel Gallimard, seu editor, na altura da Rodovia 5, se arrebentou contra um plátano, entre as pequenas localidades de Champigny-sur-Yonne e Villeneuve-la-Guyard, na França. O relógio do painel do carro foi encontrado bloqueado às 13h55m, provavelmente a hora exata de sua morte. Anne e Janine saíram ilesas e Michel morreu cinco dias depois. Em Albert Camus, uma biografia, lançado pela Record, Olivier Todd relembra "a seus amigos, Camus dizia com freqüência que nada era mais escandaloso do que a morte de uma criança e nada mais absurdo do que morrer num acidente de automóvel''.
Camus nasceu em Bône, cidadezinha a 18 horas de trem de Argel, capital da Argélia, no norte da África, a 7 de novembro de 1913. Órfão de pai vinhateiro, morto na Grande Guerra européia, e filho de uma faxineira analfabeta, cresceu a meio caminho entre a miséria e o sol.'' A biografia de Todd traz elementos pessoais novos da vida do autor, produtos de uma extensa pesquisa que incluiu cerca de 200 entrevistas e acesso a arquivos raros, e que revelam a onipresença da tuberculose, doença adquirida, em 1913, que o impediu de fazer o agrégation - exame que lhe daria acesso ao mundo acadêmico - e a intensa vida amorosa daquele que foi, desde A Peste, o pensador do absurdo.
Camus se transformou em celebridade muito cedo. Antes de completar os 30 anos, , revelou-se como intelectual brilhante com a publicação em Paris, em 1942, de "O estrangeiro", o livro mais vendido da editora Gallimard desde que ela foi fundada. Jornalista de sucesso, passou pelos jornais Alger Républican, Paris-Soir e pela revista Paris-Match, consagrando-se como o melhor editorialista da França neste século pela sua atuação no Combat, publicação símbolo da resistência à ocupação da França pelos alemães durante a 2ª Guerra Mundial "A imprensa tem um papel de conselheira a ser desempenhado junto ao governo e de guia junto à opinião pública. O jornalismo crítico implica exigir que os artigos de fundo tenham fundo e que as notícias falsas ou duvidosas não sejam apresentadas como notícias verdadeiras".
Todd nos mostra que o homem que dizia ser até à morte um homem de esquerda foi perseguido por que não aceitava as atrocidades dos regimes socialistas - foi condenado por sua posição no caso da guerra de libertação anticolonialista da Argélia "Quero lutar pela justiça. Não nasci para me resignar à história". Anuciando antes de todos que a Era das Ideologias havia terminado, em O Homem Revoltado, ousou escrever: "Os operários lutaram, foram mortos para dar o poder a militares ou a intelectuais, futuros militares que por sua vez os submetiam." Dando definições tão duras quanto exatas das ditaduras comunistas de Lênin a Fidel Castro, Camus atacou o conformismo de muitos filósofos diante da herança stalinista, alertando para o perigo do dogmatismo histórico, que aceitava a tese do fim justificado pelos meios.
Foi quando Camus trocou o jornalismo pela literatura como meio de vida, transformando-se num romancista e num intelectual amante dos debates filosóficos. "O trabalho do escritor consiste em escrever, com o máximo possível de exigências, e ao final desse esforço às vezes lhe acontece encontrar o que tanto buscou em si mesmo. A criação não é uma alegria no sentido vulgar. É uma servidão, uma terrível escravidão voluntária - e a alegria se assemelha muito à das grandes vitórias, tem um perfume de melancolia". Inspirando-se em Oscar Wilde André Gide, René Char, Ésquilo, Dostoievski e Marx e Engels , Camus deu-se conta de que os clássicos reescrevem a mesma obra continuamente e a literatura funciona como filosofia "um romance nunca passa de uma filosofia posta em imagens". Suas obras refletem isso. Tanto A Queda, OExílio e o Reino, O Estrangeiro e A Pestee a peça teatral O Mal-entendido, possuem uma estrutura construída sobre o equilíbrio frágil de forças antagônicas, num jogo de alternâncias entre natureza e história, entre o gozo individual dos bens naturais e compromisso coletivo frente à injustiça, entre desejo de permanência e destino de morte. "A miséria me impediu de acreditar que tudo está bem sob o sol e na história; o sol me ensinou que a história não é tudo."
O resgate político e filosófico de sua obra se completa com uma interpretação detalhada da vida pessoal de Camus. Reunindo uma extensão de cartas pessoais inéditas, elas permitem perceber que frente ao absurdo, ainda é mais forte a força que apela a vida. Entre as várias cartas compiladas, Todd revela Camus como o amante de várias mulheres. A primeira era Mi, uma jovem pintora. A segunda, Catherine Sellers, uma atriz que viveu papéis de destaque no teatro parisiense. A terceira, Maria Casares, internacionalmente famosa, a bela e talentosa atriz de teatro com quem manteve um relacionamento por 16 anos. Houve ainda uma quarta em Nova York, chamada Patricia Blake e Mamaine, a amante de Artur Koestler. Disso, resulta uma perspectiva que faz o biógrafo a aproxima-lo de Don Juan, protagonista de casos amorosos e que "se inebria a cada conquista". Longe de ser um parisiense despreocupado, ele importava-se com suas aventuras amorosas. "Seus relacionamentos com mulheres são muito mais saudáveis que os de Sartre, além de ser mais tocantes", afirma Olivier Todd. E completa: "Encantador e sombrio, sincero e teatral, humilde e arrogante, Camus queria que gostassem dele. Muitas vezes o conseguiu. Desejava, é claro, ser compreendido, mas não o conseguiu, no final de sua vida. Falou demais da felicidade para ser feliz" O mérito do livro é o fato de descreve-lo como ser humano e humanista, um auto-crítico e crítico do entusiasmo excessivo de seus colegas pela esquerda, um homem de frágil, multifacetado, polifônico e admiravelmente sedutor. Uma historia fascinante, que se desenrola em meio a décadas de um século atravessado por guerras e que soube extrair uma lição disso tudo, a de o absurdo da vida não pode ser um fim, mas apenas um começo e o importante são as conseqüências e as regras de que se tira dela. Marcado pela precariedade da vida, Camus nos adverte para a necessidade de aproveitá-la ao máximo. Quando o Camus morreu, Jean-Paul Sartre disse: " O seu humanismo insistente, limitado e puro, austero e sensual, travava um controle doloroso contra os acontecimentos maciços e disformes deste tempo. O escândalo desta morte é a abolição da ordem dos homens pelo inumano."
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