Todos os debates que assisto sobre o porte de arma de fogo, e claro,
quanto sua legalidade ou não, além das análises acerca do sucesso ou
fracasso do Estatuto do Desarmamento, carecem de uma abordagem
filosófica. Para tanto, vamos cumprir com o objetivo desta página.
Quando falamos de porte de arma de fogo, estamos diretamente tratando
acerca das condutas dos indivíduos, seja em defesa da restrição ou da
liberação. Aqueles que defendem a restrição acreditam que a conduta dos
cidadãos seria um problema, aumentando o índice de criminalidade ou
violência pelo uso de armas de fogo. Os que defendem a facilitação ao
porte acreditam que quanto mais arma de fogo na mão da população, as
condutas seriam adaptadas a esta nova situação, reduzindo os índices de
violência e criminalidade.
Quando observamos um debate destes
podemos perceber que, em sua grande maioria, não possuem uma abordagem
Ética. Nesse ponto precisamos entender Ética. Esta é (de maneira
grosseira), assim como a Estética e a Epistemologia, um campo de estudo
da Filosofia. A Ética estuda a vida e todas suas implicações, como por
exemplo, o que é a vida, ou como a vida deve ser conduzida para que seja
boa ou adequada, e uma infinidade de assuntos que poderíamos abordar,
mas esta não é a ocasião para tal.
Vamos concentrar nossos
esforços no assunto deste texto. Quando falamos de conduta, podemos
analisar a partir de uma relação causal, por exemplo: “João matou
Pedro”. Para explicar sua relação causal, psicólogos, sociólogos,
psicanalistas, e cientistas de diversas áreas terão mil e uma
explicações. Contudo, para a Filosofia, a causa ou o porquê não é o mais
importante, mas sim quanto à valoração da conduta. João matar Pedro foi
certo ou errado? A Filosofia se inclina para discutir o valor de uma
conduta, e é exatamente aqui que nossa conversa começa.
Para
estudar a conduta temos que fazer uma parada obrigatória no estudo da
Moral, então, nós vamos utilizá-la como ponto de partida para nossa
análise. Platão, um dos filósofos mais importantes da história, nos
apresenta a Moral com a alegoria “O anel de Giges”, encontrada no Livro
II da República.
Em um resumo simples, Giges era um pastor de
ovelhas, e durante um dia de trabalho, ele encontra um cadáver. Nesse
cadáver algo lhe chama a atenção, um anel. Tempo depois, em um momento
de vida social, como uma festa, ele se deu conta de que as pessoas
passavam por ele como se não o enxergassem. Giges percebe que este
fenômeno se devia ao fato de ele ter ou não ter o anel na mão. Ao portar
o anel ninguém o via, quando não portava, todos o viam. Giges, então,
percebe que o novo atributo lhe conferia imunidade frente ao olhar do
outro, ao olhar condenatório, repressivo, fiscalizador. Giges se
encontrava blindado por aquele anel. A partir disso, o comportamento
dele mudou completamente, de posse do anel ele tornou-se um canalha,
praticando diversos crimes de assassinato, estupro, etc.
Apesar
de parecer boba, esta alegoria nos traz uma reflexão muito profunda
acerca da Moral. Através dela, Platão nos apresenta a moralidade e
pretende nos mostrar que a Conduta Moral depende de uma atividade da
consciência de quem age e que não está submetida à interferência, que
não da própria consciência do agente. O que se pretende ensinar com isso
é que a Conduta Moral tem a ver com o que você faz, sobretudo, em
condições de neutralidade repressiva. Ou se preferir, em situações em
que não há fiscalização, uma situação de invisibilidade. A Moral,
portanto, tem a ver com aquilo que você faz ou não faz, a partir de uma
deliberação livre e não em função de um olhar repressor externo. Podemos
chamar esta prática de Consciência Moral.
Você provavelmente
pode lembrar-se que sempre que questionado sobre do que se trata a
Moral, respondeu exatamente o contrário do que estamos apresentando.
Certamente você acreditava que Moral se trata de um conjunto de regras
de conduta que se fomentam a partir da observação de terceiros, ou seja,
você pratica um ato Moral quando alguém ou alguma tabela te diria o que
é Moralmente aceitável ou não. Na contramão desta equivocada
perspectiva, a Moral é exatamente o que você pretende fazer ou não fazer
em situações em que só depende de você mesmo decidir.
Platão usa
esta alegoria para nos mostrar que a pertinência da Moral é o uso da
consciência como critério para dar valor à conduta que se pratica ou irá
praticar. Ora, se entendemos que uma análise quanto ao valor de uma
conduta depende de uso prático da capacidade intelectiva sem
interferência ou coação externa, podemos dizer que vivemos em uma
sociedade Desmoralizada.
Venha comigo, para entender melhor.
Lembra-se do “Sorria, você está sendo filmado”? Pois bem, vivemos em uma
sociedade em que somos fiscalizados todo o tempo e passamos a agir e
conduzir nossas vidas em situações em que fazemos ou não algo em
detrimento de um olhar repressor. Desta forma, somos criados e criamos
outros indivíduos a partir da ótica de: quando estiver sendo observado,
faça o que deve ser feito, quando não estiver sendo observado, faça
aquilo que quiser fazer.
Vamos voltar agora ao tema principal.
Sabemos que no Brasil existe uma forte política de restrição do porte e
comercialização de armas de fogo. Sabemos, também, que estamos em um
país repleto de impunidade e que cometer um crime não gera uma grande
consequência para quem o escolhe praticar. Bom, vamos criar um paralelo.
Imagine que, por sermos fiscalizados por um poder de justiça e polícia
estatal, praticamos nossas condutas dentro das normas estabelecidas
pelas repressões externas. Contudo, parcela da população, assim como
Giges, adquire uma blindagem ou imunidade, seja por possuir um cargo
privilegiado nos órgãos fiscalizadores ou por possuir regalias perante a
justiça.
Esta reflexão tem o objetivo de mostrar que,
independente das regras impostas, aqueles que possuírem o anel de Giges
irão praticar seus crimes sem qualquer tipo de constrangimento, e é
exatamente isto que vemos nos dias de hoje. Resolvi escrever este texto
devido ao aumento expressivo do número de assaltos, furtos, tentativas
de homicídios, pessoas feridas com facadas, entre outros absurdos, no
bairro onde moro.
Para tanto, eu, um cidadão que segue os ditames
da Lei e dos princípios impostos, não posso defender-me quando “um
Giges” me aborda com uma arma de fogo. Por esta breve reflexão, eu posso
demonstrar que: TODA lei restritiva de porte de qualquer tipo de arma
não impedirá que algum indivíduo blindado pratique seus crimes, desde
que ele esteja portando seu Anel mágico.
Bom, mas e se o porte de arma fosse facilitado ou liberado?
Se por um lado, a tentativa de tirar do indivíduo a responsabilidade de
dar valor as suas próprias ações gera conflitos e desmoraliza qualquer
sociedade, por outro lado dar a ele as condições para que reflita sobre a
responsabilidade de praticar um ato é obrigatoriamente incentivá-lo a
começar a valorizar suas condutas a partir de uma Consciência Moral.
Desta forma, dar ao indivíduo o direito a portar uma arma de fogo é
conferir-lhe o dever de ser responsável por suas condutas. Sendo assim,
poderíamos virar todos “Giges” portando o anel da invisibilidade? Ué?
Mas aí todos irão praticar crimes e viver fora da repressão externa?
Não! Vamos explicar por que.
Lembra-se que “Giges” antes de
portar o anel não praticava atos criminosos, e tão somente os praticou
quando se tornou imune à fiscalização de terceiros? Pois bem, o nome
daquilo que regula o indivíduo quando sobre fiscalização é MEDO. Sim, o
Medo!
Se a Moral é a autotutela a partir da reflexão acerca dos
valores da conduta, o Medo é a sensação propiciada pelo olhar repressor
de outros. Para que fique mais claro, tanto a Moral quanto o Medo são
formas de controle, uma é autocontrole e outra um controle externo. Para
que fique ainda mais claro, se eu não pratico algo errado por uma
consciência moral ou não pratico algo por medo, no final das contas, o
resultado acaba sendo semelhante, ainda que com caminhos diferentes.
Em uma sociedade desmoralizada e de repressão e fiscalização intensa,
aqueles que possuem o Anel passam a ser os “imunes que tudo podem”.
Podem praticar crimes e possuírem privilégios por terem apenas 17 anos
de idade, por exemplo, ou até mesmo cometerem crimes e se tornarem
Ministros. Mas e quando tirarmos das mãos de todo mundo o “Anel de
Giges”?! O resultado é claro. Aqueles que possuem consciência moral irão
conduzir suas vidas a partir da valoração de suas condutas em
detrimento de uma reflexão e ponderação do que seria certo e errado.
Aqueles que conduzem suas vidas sem qualquer Consciência Moral irão
temer as consequências de cometer crimes, uma vez que a fiscalização
deixa de ser seletiva, caindo a invisibilidade que os conferiam
imunidade e privilégios perante os olhos fiscalizadores. Estes passam a
ter Medo.
Para concluir, quando falamos de condutas, temos duas
formas de controle natural: Moral e Medo. Quem possui Consciência Moral
irá valorar suas condutas a partir de uma reflexão, de um diálogo
consigo mesmo, de uma deliberação livre, para posteriormente agir. Por
outro lado, quem somente é capaz de agir a partir da tutela ou falta
desta vinda do olhar de terceiros, também terá a sua conduta controlada.
O que não podemos permitir é que deixemos nas mãos de um Estado
(privilegiado) decidir quem pode ou não portar o Anel de Giges. Quer
resolver o problema de segurança pública? Retire o Anel de todos, retire
as imunidades e deixem que as pessoas conduzam suas vidas, seja pelo
Medo de perdê-la ou pela Moral que nos faz dar valor a nossa vida e a
vida de outrem.
Em uma situação prática, me responda: qual a
chance de alguém atirar em pessoas no meio da rua? Tende a zero, pois ou
ela acha Moralmente errado ou ela tem Medo de perder sua vida.
Espero que a Filosofia ajude a esclarecer os debates e que as suas conversas de bar fiquem muito mais ricas após esta leitura.
Fonte: https://www.facebook.com/filosofodeboteco/posts/armas-de-fogo-o-que-a-filosofia-tem-a-ver-com-issotodos-os-debates-que-assisto-s/131545917255443/