Filosofia Circular

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Filosofia da depressão


Uma em até cinco pessoas pelo mundo, em um período da vida, provavelmente apresentará o que a medicina denomina depressão. Determinadas modificações químicas no cérebro com vinculação dos neurotransmissores (noradrenalina e serotonina, em maior proporção estas) estarão associadas a autoestima arruinada, tristeza continuada, alterações cognitivas graves. Cansaço, medo, desinteresse, vazio, sensação de dor, de morte, insônia.
Suponha que eu diga que um ventilador apresenta barulho, as pás se movimentam em baixa rotação, às vezes param. E em seguida, eu lhe digo que abriremos o pequeno motor elétrico do ventilador e que pesquisaremos o que faz com que ele apresente autoestima arruinada, tristeza continuada, cansaço. Você me diria que uma pessoa não é um ventilador? Sim, eu acredito que a maioria não é um ventilador; não sei dizer de todas, não as conheço. A Filosofia Clínica estuda alguns elementos dos bastidores mecânicos do fenômeno médico (não filosófico clínico) nomeado por depressão. Exemplo: historicamente, a depressão é tida como apatia, renúncia, recuo, destituição dos elementos vitais. Uma falácia compreensível, mas cada vez menos justificável, se você tomar a Filosofia Clínica como estudo. Acredito na depressão como um movimento também de luta, de afirmação, de vida. N., senhora a quem atendi há muitos anos, escreveu na época: "...a única vez em que tenho a lembrança de estar realmente viva, Lúcio, foi quando estive em depressão. Aquele luto, tudo sem cor, dor no corpo, vontade de morrer é que me fez viver. Aprendi o que é viver na minha depressão. Sem a depressão a minha vida não teria graça nenhuma".
Mas é notório que alguns não desenvolvam a depressão, ainda que diante de quadros existenciais predisponentes historicamente a ela. Já algumas pessoas, pela constituição interna que formaram estruturalmente, caminham facilmente, pelo pequeno estímulo ou nenhum, em direção a ela. Encontram subterfúgios para um caminho rumo ao que se chama depressão. Há muitos exemplos. Um deles encontramos nas palavras de Nietzsche em Para além do bem e do mal quando escreve: "Os homens que conheceram a profundidade da tristeza, se traem quando são felizes, têm um certo modo de compreender a felicidade que parece mostrar que querem comprimi-la e sufocá-la, por ciúmes - porque sabem que, infelizmente, essa logo fugirá".
Também a sociedade pode empurrar grupos de pessoas a uma condição similar ao que a medicina chama de depressão por motivos que vão da lição à advertência. Mas qual a razão de, eventualmente, a sociedade promover a depressão e, concomitantemente, oferecer auxílio para a depressão que - neste caso - fomentou? Uma das respostas está na natureza da ajuda que a sociedade oferece (observe em quais condições os remédios e as terapias servem como paliativos, quando estão a serviço do próprio "mal" a que se propõem debelar). Existem fatores sociais, intrincados, derivativos, difíceis de mapear que podem levar ao que se denomina depressão. Diversos pesquisadores buscaram estes vetores; alguns autores os imaginaram, inventaram, enquanto outros os descobriram. Nem sempre esta diferença é relevante. Tomemos como exemplo o que Joaquim Nabuco escreveu em O abolicionismo, obra de 1884 (por favor, procure dar contexto ao escrito que segue): "Quanto às suas funções sociais, uma aristocracia territorial pode servir ao país de diversos modos: melhorando e desenvolvendo o bem-estar da população que a cerca e o aspecto do país em que estão encravados os seus estabelecimentos; tomando a direção do progresso nacional; cultivando, ou protegendo, as letras e as artes; servindo no exército e na armada, ou distinguindo-se nas diversas carreiras; encarnando o que há de bom no caráter nacional, ou as qualidades superiores do país, o que mereça ser conservado como tradição. Já vimos o que a nossa lavoura conseguiu em cada um desses sentidos, quando notamos o que a escravidão administrada por ela há feito do território e do povo, dos senhores e dos escravos.
Desde que a classe única, em proveito da qual ela foi criada e existe, não é a aristocracia do dinheiro, nem a do nascimento, que papel permanente desempenha no Estado uma aristocracia heterogênea e que nem mesmo mantém a sua identidade por duas gerações? Se, das diversas classes, passamos às forças sociais, vemos que a escravidão, ou as apropriou aos seus interesses, quando transigentes, ou fez em torno delas o vácuo, quando inimigas, ou lhes impediu a formação, quando incompatíveis".
Intensidade na experiência dos fenômenos relacionados à depressão é um dos fatores mais mencionados por pessoas que a viveram, como a tristeza muito forte. Existe aqui uma peculiaridade: a intensidade, de modo amplo, mas sem ser regra, liga-se imediatamente a dois eventos usualmente próximos. O primeiro, a paralisação de atividades que estavam em andamento; o segundo, ao contraste com os fenômenos internos. Mas já encontrei situações em clínica nas quais as pessoas atribuíam a intensidade por diferenciação e não por critérios de mais ou de menos.
A Analítica de Linguagem, um dos ricos veios da Filosofia Clínica, auxilia a decodificação dos laços internos, a mecânica da depressão, quando os dados de Semiose são verossímeis. Ou seja, observe a vizinhança, os referenciais, o movimento para uma acepção. E os casos nos quais tudo vai bem existencialmente, não há quaisquer registros que possam aventar a possibilidade de um quadro depressivo, nem histórico em torno da pessoa, e subitamente um forte episódio de depressão desce sobre a vida da pessoa arruinando suas buscas, seu trabalho, sua família? Eis um dos motivos pelos quais em Filosofia Clínica tanto se confere ênfase a interseções tópicas, aos movimentos estruturais.
A depressão também pode ser indicada existencialmente. Certa ocasião, em uma aula, sugeri a uma aluna farmacêutica que oferecesse em sua farmácia depressivos, e não apenas antidepressivos. A questão é que a sociedade na qual vivemos entende como razoável o antidepressivo e como uma afronta o remédio depressivo.

Fonte:Lúcio Packter é filósofo clínico e criador da Filosofia Clínica. Graduado em Filosofia pela PUC-FAFIMC de Porto Alegre (RS). É coordenador dos cursos de pós-graduação em Filosofia Clínica da Faculdade Católica de Cuiabá e Faculdades Itecne de Cascavel. luciopackter@uol.com.br

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