Cada fim de ano figura o fim do mundo. Vejo no sorriso alegre de cada indivíduo uma espécie de maquiagem, máscaras, estas que escondem uma caveira em decomposição. Não se trata de querer assustar os pobres humanos com a morte que há de vir, mas de constatar que não há motivos para sorrir tanto e, mesmo assim, sorriem em meio a frases prontas como “Feliz ano novo e que tudo se realize no ano que vai nascer”. Ora, um filósofo chato de carteirinha começaria a fazer uma profunda avaliação da sentença, que toma como base princípios indemonstráveis – todo princípio é indemonstrável para quem não sabe –, que engana o homem e que este parece gostar de ser enganado. Mas o desejo de ser feliz continua tão presente como a nervura que estrutura o homem em pé, que o permite levantar da cama e mendigar a felicidade como o caçador busca sua presa. O homem é um predador da felicidade, mas, com uma ressalva: o negócio é permanecer no desejo e nunca alcançar a presa. É o que o velho e bom Blaise Pascal chamaria de divertissement, um desvio militar estratégico da própria condição, um esquecimento de si, do próprio vazio ancorado no coração humano. No entanto, não há coisa melhor a se fazer, para aqueles que bancam os filósofos, pois detectar o divertissementno povo já é divertissement de intelectual. Diante disso, mergulhado no divertissement ou abraçando-o ao detectá-lo, como poderíamos viver?
De fato, esta última questão parece ser o grande enigma do filósofo que busca a saída da caverna e a visão do esplendor das ideias que podem dirigir a vida. Nestes tempos de festas que o mercado tomou conta – e o mercado sempre tomará conta de qualquer festa, até da filosofia, mas isso é estória para outro dia –, salientei a busca da felicidade e o trágico pensamento de Pascal. Agora, antes de desejar meu feliz ano novo filosófico, trago ao palco mais dois filhos da tragédia, Epicteto e Schopenhauer. O primeiro tem uma pérola que escorre entre seus dedos e, por acaso, caiu sobre minha escrivaninha: “Não busque fazer com que os acontecimentos cheguem como você quer, mas queira os acontecimentos como eles acontecem, e o curso de tua vida será feliz”. (Manual, VIII, Ed. Flammarion). A vontade de gravitar os acontecimentos como convém à nossa vontade é o erro do homem: este deve assentir àquilo que acontece e como acontece. O filósofo grego é um trágico ao mostrar este desajuste entre o não sábio e tudo que lhe acontece. A tonicité – firmeza – buscada com tanto afinco pelos estóicos ainda tem algo a nos ensinar, pois será permanecendo nela que seremos felizes e poderemos entoar um feliz ano novo estóico. Todavia, ainda não cheguei lá: olhando mais de perto, quais seriam estes acontecimentos que acariciam nossos rostos todos os dias e, mesmo ferindo a pele ao nos tocar, manteria nossa tonicidade? Schopenhauer atravessa o século e sussurra um grito em meus ouvidos: “Parecemos carneiros a brincar na relva, enquanto o açougueiro já está a escolher um ou outro com os olhos, pois em nossos bons tempos não sabemos que infelicidade justamente agora o destino nos prepara – doença, perseguição, empobrecimento, mutilação, cegueira, loucura, morte, etc.” (Contribuições para à doutrina do sofrimento do mundo, &150, Coleção OS PENSADORES). Não faço aqui grandes elucubrações abstratas – meus pés estão no barro e cheiram sangue, como a citação do filósofo alemão. Agora poderemos dizer feliz ano novo, mas lembrando que o divertissement de Pascal é o que nos mantêm no processo, então, que nem tudo se realize no ano que vai nascer, pois o que nos restará a fazer se tudo já estiver feito? Portanto, em um só coro, em uma só voz, Epicteto, Pascal e Schopenhauer exclamam, com todas suas observações, seu feliz ano novo filosófico: “Feliz ano novo e que nem tudo se realize no ano que vai nascer”, apesar de nosso Mario Quintana, o poeta de Alegrete, não deixar esquecer em um de seus poemas que estão gravados no meu coração, quando penso como poderia escolher viver: “A vida é triste, o mundo é louco”. (A Cor do Invisível, p. 882, Editora Nova Aliança).